A Páscoa e os Quatro Cálices do Seder
Ao pôr-do-sol de 26/03/21, inicia-se o dia 14 de Nisan, conhecido como Dia da Preparação, e que antecede a Páscoa do Senhor (Pesach). É um dia muito especial, pois, dentre todos os preparativos, ocorria o sacrifício dos cordeiros por cada família, além da oferta do cordeiro pascoal por toda a nação de Israel, conduzido no altar do Templo de Jerusalém no horário do sacrifício vespertino, às três horas da tarde. Foi nesse exato dia e horário que Yeshua, o Cordeiro de Deus, morreu na cruz do Calvário como oferta da Páscoa (Korban Pesach). Na noite que marca o início desse dia, Ele participou com seus discípulos, como é costume de todas as famílias judias até hoje, do seder de Pesach, uma refeição tradicional de milênios que conta a história milagrosa da libertação de Israel do Egito, contida no livro do Êxodo. Durante o seder, há quatro cálices de vinho ou suco de uva que são bebidos pelos participantes. E é sobre eles que gostaria de discorrer.
É importante sublinhar que Jesus como judeu observava todas as Festas do Senhor. Há registro nos Evangelhos dele subindo a Jerusalém para celebrá-las desde menino, conforme o mandamento, especialmente as três grandes Festas (Páscoa, Pentecoste e Tabernáculos). Sua participação nesse seder de sua última Páscoa na Terra, juntamente com os discípulos, comprova isso.
Os quatro cálices estão baseados em quatro promessas contidas em Êxodo 6:6,7 e cada um deles aponta para o Messias de Israel. O primeiro é o cálice da santificação e está na passagem que diz: “Eu sou o Senhor, e vos tirarei de debaixo das cargas dos egípcios”. A palavra santificação (kedushá) significa separação. Deus separa Israel como nação para servi-lo. Uma nação não poderia servir o Senhor sendo escrava, daí a promessa de separação, pois é preciso sair debaixo do jugo da servidão do Egito. Este é um símbolo do mundo e da vida pecaminosa. Aqui está claramente a figura do Messias que nos liberta do jugo do pecado para servi-lo. Yeshua é a nossa santificação (1Coríntios 1:30).
Com essa liberdade que nos é dada pelo livramento “das cargas dos egípcios”, advém uma responsabilidade. Ser livre não deve ser confundido com se fazer qualquer coisa que se queira e essa não é a ideia de liberdade da Torá. Jesus ensinou que todo aquele que peca é escravo do pecado (João 8:34). Porém, se o Filho nos libertar, somos verdadeiramente livres (João 8:36). A palavra liberdade (חרות – cherut) sugere ser livre para fazer o que deve ser feito, ou ter o poder de agir com responsabilidade. Somente os que obedecem a Deus são de fato pessoas livres. O mês de Nisan, quando ocorre a Páscoa, além de ser conhecido por “tempo de nossa redenção”, também é conhecido por “tempo de nossa liberdade” (z’man cheruteinu).
A segunda porção a ser bebida no seder é o cálice do livramento ou do juízo. Está baseado na passagem: “livrar-vos-ei da sua servidão”. Tal cálice se refere às pragas que Deus lançou sobre o Egito a fim de humilhar faraó para que deixasse Israel partir. Todos os cálices do seder são bebidos com alegria. Esse, porém, é bebido com menos alegria, se é que se pode dizer assim. O fato das pragas, especialmente a dos primogênitos, trazer tragédia e destruição sobre seres humanos, mesmo que esses fossem inimigos de Israel, não deve ser motivo de regozijo, mas de temor a Deus.
A morte de faraó e seu exército no Mar Vermelho também é visto com pesar, não obstante o livramento de Deus. De um modo interessante, a tradição judaica relata que, quando os egípcios se afogavam no mar, os anjos começaram a exultar e a louvar a Deus com alegria. Porém, o Senhor os repreendeu, dizendo: “Os egípcios, obra de minhas mãos, estão se afogando e vocês cantando diante de mim?”.[1] De fato, Deus não se alegra com a destruição dos ímpios, como está escrito: “Vivo eu, diz o Senhor DEUS, que não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho, e viva” Ezequiel 33:11. Por esse motivo, ao se pronunciar cada uma das pragas que atingiram os egípcios, derramam-se algumas gotas do cálice em sinal de pesar pelas vidas perdidas. Em meio ao juízo de Deus sobre vidas humanas, a alegria não pode ser plena, daí a necessidade de se esvaziar um pouco esse cálice.
Enquanto se bebe dos cálices e se come dos alimentos do seder, a história do Êxodo é contada e cantada, numa extensa liturgia, o que foi seguido por Jesus e seus discípulos. É uma refeição longa e muito rica em detalhes, levando-se horas ao redor da mesa. Sabemos que Jesus não somente não abriu mão desse tempo com os discípulos, bem como aproveitou a oportunidade para transmitir grandes ensinamentos que foram registrados nos Evangelhos, especialmente no de João. Na sequência do seder, antes do terceiro cálice, é o momento de se partir e comer o matzah (pão asmo), introduzindo-se a festa de sete dias dos asmos. Há muito que se falar sobre esse pão tão especial que tem sido comido em todas as gerações desde que Israel deixou o Egito há cerca de 3.300 anos.
O mais relevante é que, nesse momento de se comer o asmo, Yeshua o toma nas mãos e recita a bênção do pão. Observe que ele não abençoa o pão, como está na maioria das traduções, mas recita a bênção milenar em ação de graças pelo pão, que diz: “Bendito és tu, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que faz o pão brotar da terra”. Em seguida, reparte-o e o distribui entre os discípulos, dizendo: “Isto é o meu corpo, que por vós é dado; fazei isso em memória de mim” Lucas 22:19.
O asmo, por ser sem fermento, aponta para uma vida sem pecado, pois assim como o fermento infla a massa, o fermento da vaidade e do orgulho infla o ego, levando a pessoa a pecar. O asmo também é conhecido como o pão de aflição, pois foi feito às pressas para que o povo tivesse algo que comer quando partiu rumo ao deserto do Sinai. Esses dois aspectos apontam para Yeshua, aquele que foi perfeito, “o qual não cometeu pecado, nem na sua boca se achou engano” 1 Pedro 2:22; e aquele que sofreu sobre si nossas aflições: “Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido” Isaías 53:4. Yeshua é o matzah do seder de Pesach: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo” João 6:51.
Antes de comer o matzah, ao dizer “fazei isso em memória de mim”, Yeshua instituiu a ceia do Senhor que seria celebrada pelos cristãos de todo o mundo pelos séculos e milênios até hoje. Após se comer o matzah, é chegado o momento do terceiro cálice. Este é o cálice da redenção ou da salvação e se refere à promessa: “e vos resgatarei com braço estendido e com grandes juízos”. Foi esse o cálice que Ele ergueu e recitou a bênção milenar do vinho que diz: “Bendito és tu, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que cria o fruto da videira”. Em seguida, ele afirma: “Este cálice é o Novo Testamento no meu sangue, que é derramado por vós” Lucas 22:20. Esse é o cálice mais especial para nós que cremos em Yeshua, pois está conectado diretamente com seu sangue derramado por nós, estabelecendo uma nova aliança (Brit Hadashah). A velha aliança abrangia apenas Israel; nesta, todos os que creem no seu nome são chamados à salvação, o que inclui todas as nações, povos, raças e línguas.
O próprio Yeshua declarou: “Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida” João 5:24. O verbo passar relembra o anjo da morte que, ao ver a marca do sangue do cordeiro pascoal nas casas dos israelitas, passava por cima das mesmas que não sofriam o juízo divino. A mesma ideia é transmitida aqui ao se “passar” da morte para a vida eterna (chaiei olamim), quando o sangue do Cordeiro de Deus nos livra de toda e qualquer condenação.
Durante o seder, vários salmos e cânticos são cantados como expressão de louvor a Deus. O hallel (louvor) equivale à sequência dos salmos 113 a 118, especificamente cantados nessa ocasião. Alguns desses salmos são messiânicos, ou seja, referem-se à vida e obra do Messias. O salmo 116 é um deles. O salmista pergunta: “Que darei eu ao Senhor por todos os benefícios que me tem feito?” (v.12). E a resposta vem em seguida: “Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor” (v.13). Essa é uma referência clara ao terceiro cálice do seder, ao qual Jesus equiparou ao seu sangue, instituindo a nova aliança. Essas palavras proféticas foram cantadas por Yeshua em sua última noite, juntamente com seus discípulos. Esse foi o mesmo cálice que Ele beberia horas depois ao sofrer sua Paixão, derramando lágrimas de dor e sangue para dar de graça a salvação a todo aquele que crê. Bendito seja seu nome!
Por fim, o quarto cálice é o do louvor e se refere à promessa que diz: “Eu vos tomarei por meu povo e serei vosso Deus”. Esse é bebido com muita alegria e com cânticos finais do hallel para celebrar o livramento e a salvação de Deus para com Israel. Como cristãos gentios, podemos e devemos celebrar essa ocasião e essa data tão relevante não somente para todo Israel, mas na vida e ministério de Yeshua, assim como na vida de cada um que foi alcançado por tão grande salvação. Yeshua, que nos deu o pão e o vinho do seder, seu corpo e seu sangue por redenção, é digno de todo louvor, honra e glória pelos séculos dos séculos!
[1] Talmude, Megillah 10b.
כוס ישועות אשא ובשם יהוה אקרא
(Cos yeshuot esah uv’shem Adonai ekra)
“Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor”(Salmo 116:13)
Leia também:
Celebrando a Páscoa sem Fermento
A Páscoa e o Tempo de Nossa Liberdade
A Páscoa e a Figura do Cordeiro
Leitura e Meditação para a Páscoa – Parte 1
O tema da Festa da Páscoa é bem mais abrangente e discutido com maior profundidade e detalhes, assim como as demais Festas do Senhor, no livro “A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo”. Os que desejarem adquirir uma cópia podem fazê-lo diretamente pelo site da editora ou pelo site da Amazon para versão e-book (links disponíveis aqui no blog).
Abaixo segue um vídeo da canção de parte do Salmo 116, salmo messiânico cantado no seder de Pesach, exatamente como consta das Escrituras originais em hebraico.
Excelente texto! Bem elucidativo e acrescenta conhecimento a respeito de Jesus Cristo.
Obrigado, Arthur. Shalom!
Getúlio, você se esqueceu de falar do quarto cálice de Seder.. No Getsêmani Jesus ainda não o bebeu e, inclusive, pede “Pai, se possível, afasta de Mim esse cálice. Todavia, não seja como Eu quero e sim como Tu quererá!” (MT. 26, 39). Finalmente, como ato final de nossa redenção Ele finalmente o bebe (Jo 19; 28-30).
Gustavo, o quarto cálice está no último parágrafo. Este era o cálice do louvor, baseado em Êx. 6:7 e é bebido ao final do seder, junto com o salmo 118, último do hallel. O que alguns autores defendem é que Jesus se recusou a beber esse cálice porque ele tem de ser bebido com alegria, o que não era o caso, pois sua “alma estava profundamente triste até a morte” (Mc 14:34). Por isso que, ao dar o terceiro cálice aos discípulos, Ele diz que não beberia mais do vinho até que o faça no Reino de Deus (Mc.14:25), o que seria uma referência ao quarto cálice. Ele somente o beberá quando estiver com sua noiva reunida nas Bodas do Cordeiro e em plena alegria. Sua oração no Getsêmani é em relação ao terceiro cálice, o da salvação. É esse que Ele precisava beber para salvar a humanidade e pede para passá-lo. Profeticamente, Ele já o havia bebido no seder e aqui Ele precisa bebê-lo ao sofrer sua Paixão. É o mesmo cálice cantado no hallel no salmo 116 e que redundava em sofrimento e rendição.
Muito bom todo o texto, nos traz mais conhecimento acerca da palavra e salvação. Bom seria se todos realizassem a ceia como está escrito e não aleatoriamente. Por aí dá-se a entender por que muitos ficam doentes e até morrem, pois tomam a ceia de qualquer jeito. Que o ETERNO TE ABENÇOE CADA VEZ MAIS.
Obrigado, Roberto.
Quanto mais entendimento melhor. Não deixe de ler a seção sobre o seder de Páscoa no livro A Oliveira Natural. É um conhecimento rico que lhe acrescentará muito mais. Shalom!
Que texto maravilhoso, rico em detalhes que fazem da Ceia do Senhor mais especial e significativa como sempre foi. Parabéns pela dedicação e empenho em tamanho conhecimento sobre o Senhor Jesus e Suas últimas horas antes do sacrifício por nós. Shalom!
Shalom, Lucas!
Obrigado pelas palavras. No livro a Oliveira Natural, há um estudo mais profundo e detalhado sobre a Ceia do Senhor que talvez lhe interesse. Que o Senhor o abençoe ricamente. Um abraço!
Belíssimo texto, parabéns! Em relação ao quarto cálice, deixo a sugestão de leitura do livro exatamente com esse nome – O quarto cálice – de Scott Hahn, esse grande biblista, que sugere uma interpretação absolutamente revolucionária: Jesus interrompeu a ceia pascal antes deste cálice, pois os sinóticos são unânimes em dizer que Jesus afirmou “não tornarei a beber do fruto da videira…”. assim que abençoou o terceiro.. No jardim das Oliveiras, Jesus pediu ao Pai, “se for possível, afasta de mim este cálice”, e durante a sua Via Sacra, recusou sistematicamente que lhe oferecessem de beber. Por fim, na cruz, S. João diz que Jesus exclamou, “tenho sede!” Pedindo expressamente de beber, e que esta última bebida – o quarto cálice – lhe foi oferecida num ramo de hissopo, o tal ramo usado na aspersão do sangue do cordeiro… E é depois de beber o quarto cálice, que Jesus diz: tudo está consumado! Agora sim, Jesus podia celebrar a redenção do seu povo, bebendo o cálice que conclui a ceia pascal. Não fazia sentido bebê-lo antes da crucifixão. A ceia pascal e a crucifixão ficam assim realmente ligadas, num mesmo contexto litúrgico.
Fica a partilha, que acho fascinante, e de novo agradeço por este belíssimo texto. Shalom!
Teresa
Prezada Teresa,
Muito obrigado por seu comentário, bem como pela bela e edificante reflexão sobre o quarto cálice, o que certamente agrega ao sentido da Páscoa do Senhor.
Shalom!
Olá Teresa, acredito que este argumento do Scott Hahn, é algo pessoal,
Eu por exemplo, entendo que Yeshua não se referiu especificamente ao 4 cálice e sim ao Seder completo.
Evangelho de Lucas 22:16
Shalom! Maravilhoso e muito rico em detalhes, me ajudou muito pra preparar o Seder de Pesach. Que o Eterno continue te abençoando!
Prezada, Cleidemea,
Obrigado! Espero que tenha tido um seder abençoado.
Shalom!
Muito bom, amei esse estudo, Deus continue abençoando 🙏
Obrigado, Marcos! Shalom!
Excelente estudo bíblico.
Obrigado, Carlos. Shalom!
Obrigada por compartilhar tão precioso estudo! Que Deus te abençoe sempre🙏🏽
Obrigado, Patricia! Shalom!
Grandiosa e profunda explicação dos cálices, bem como suas aplicações à nossa comunhão com o Senhor. Obrigado por esse rico texto! Deus o abençoe. Shalom!
Caro Valdeir,
Obrigado pela leitura e por seu comentário. Shalom!
Olá! Parabéns pelo blog! Eu tenho uma dúvida: Na instituição da Páscoa em Êxodo 12 não há menção ao vinho como elemento componente da Páscoa. É possível saber quando o vinho foi introduzido ao jantar de Páscoa? Desde já, muito obrigado!
Olá, João, agradeço o comentário. A primeira menção do vinho no seder está no Livro dos Jubileus, um dos apócrifos judaicos, cuja data é motivo de discussão, mas que teria sido escrito por volta do século II a.C. Os quatro cálices como mandatórios no seder estão na Mishná. Embora tenha sido escrita no século II d.C, trata-se de uma compilação da Lei Oral acumulada de séculos antes de Cristo. Portanto, é muito difícil saber quando exatamente os quatro cálices foram introduzidos no seder, mas podemos assegurar que foi muito tempo antes de Jesus.
Uma Feliz Páscoa!
Obrigado pela atenção e resposta! Foi muito esclarecedor. Eu estou preparando um estudo sobre a Páscoa para ministrar na Escola Bíblica Dominical. Quais são os capítulos dos seus livros em que você fala sobre a Páscoa?
Feliz Páscoa para você também!
As três festas que abrangem a Páscoa estão no capítulo 6 e 7 do volume 1 que trata das Festas da Primavera, ligadas à primeira vinda do Messias. O volume 2 aborda as Festas do Outono, ligadas à segunda vinda.
Shalom!