Jesus e a Língua Hebraica – Parte 2
No presente artigo, vou expandir um pouco mais o tema da língua hebraica no ministério de Jesus devido ao interesse despertado pelos que têm lido sobre o tema no livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo, bem como pelo bom retorno do último artigo postado aqui na página. Vamos analisar brevemente mais algumas expressões de Jesus e a língua hebraica (parte 2) contextualizada nos Evangelhos.
Quando se lê a Bíblia, deve-se ter em mente que os fatos relatados ocorrem em um contexto hebraico. A despeito do original dos Evangelhos ter sido escrito em grego, suas histórias ocorreram tendo não somente a língua hebraica como pano de fundo, mas os escritores são de origem hebraica, a cultura é hebraica, as tradições e os conceitos são hebraicos. Embora houvesse também o aramaico falado no tempo de Jesus, o consenso hoje entre os eruditos é de que os relatos dos Evangelhos tenham sido escritos inicialmente em hebraico, somente traduzidos mais tarde para o grego.
Dentro do hebraico, há os hebraísmos que são locuções peculiares da língua hebraica. Trata-se de expressões únicas ocorridas apenas dentro dessa língua. Em uma instância mais ampla, referem-se também à cultura, tradições e fé do povo judeu. Os Evangelhos estão repletos de hebraísmos, expressões idiomáticas empregadas no século I que foram traduzidas literalmente para o grego. Isso explica o porquê de tantas palavras e expressões usadas por Jesus serem de difícil compreensão.
Muitos eruditos acreditam que demasiada ênfase foi dada ao estudo do grego por causa dos Evangelhos em detrimento do hebraico. Hoje sabe-se que a chave para compreender melhor seus escritos reside na língua hebraica, além de se buscar conhecer e compreender a história e cultura hebraicas. Em suma, a resposta está em Israel, a Oliveira Natural, e nas raízes judaicas do cristianismo.
“Salgado com fogo”
Uma das expressões usadas por Yeshua mais difíceis de compreender está no Evangelho de Marcos: “Porque cada um será salgado com fogo” Marcos 9:49. Essa passagem fica ainda mais confusa no verso seguinte, quando Ele diz que os discípulos devem ter sal em si mesmos. Aqui a interpretação é clara e direta. Os discípulos devem fazer a diferença com seu modo de vida, assim como o sal faz a diferença no sabor da comida. Nos dois versos, Yeshua faz um duplo emprego com a palavra sal, o que mostra um bom domínio do hebraico, como era de se esperar de um rabino. No entanto, o que Ele quis dizer no verso 49 com “salgado com fogo”?
Muitas explicações teológicas têm sido dadas, ao longo dos séculos, sobre essa expressão e a maioria delas afirma que Jesus estava se referindo à purificação pelo fogo, uma vez que o sal era usado nas ofertas sacrificiais do templo. Porém, estudos mais recentes, a partir do século XX, feitos por intermédio de tradução reversa do grego para o hebraico, mostraram que se trata de um hebraísmo. Um dos pioneiros nesses estudos foi Robert Lindsey, judeu messiânico que viveu em Israel no século passado e um dos grandes estudiosos do Novo Testamento sob o contexto judaico. Ele chegou a escrever Uma Tradução Hebraica para o Evangelho de Marcos, o que trouxe muita luz sobre o assunto.
Ao analisar o emprego do sal nas Escrituras, vê-se que, além de seu uso nos sacrifícios no templo, ele era também um símbolo de esterilidade, como descrito em Ezequiel 47:11; e de destruição, como em Juízes 9:45. Talvez o caso mais conhecido seja o da mulher de Ló que foi transformada em estátua de sal por sua desobediência.
Se analisarmos o contexto em que Yeshua usa essa expressão, Ele está falando sobre o inferno e seu sofrimento para os que para lá forem lançados (Marcos 9:42-48). Ao compreendermos esse significado do sal na cultura hebraica, faz todo sentido dizer que o Messias está se referindo à destruição completa pelo fogo do inferno. Isso nada tem a ver com purificação da alma ou o que quer que seja.
A tradução de Robert Lindsey sugere que essa expressão idiomática “salgado com fogo” foi traduzida literalmente para o grego, em vez de ser adaptada. Uma tradução menos literal e mais precisa seria: “Cada um (que for lançado no inferno) será completamente destruído”. A expressão “salgado com fogo” foi perfeitamente compreendida pela audiência de Yeshua, porém, ao ser traduzida literalmente para outras línguas e culturas que desconheciam a cultura hebraica, perdeu seu sentido, causando confusão ainda hoje.
Olho bom e olho mau
Outra passagem incompreendida de Jesus encontra-se no Evangelho de Mateus: “São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso;
se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas (…)” Mateus 6:22,23. Mais uma vez, os tradutores incumbidos de passar o original escrito por Mateus para o grego falharam em identificar uma antiga expressão idiomática do hebraico, dando-nos uma tradução de sentido obscuro.
O original, na verdade, para a palavra traduzida como olhos é olho. “Olho bom” (ayin tovah) era uma expressão hebraica para uma pessoa generosa e “olho mau” (ayin rah) para alguém avarento. Em português, temos uma expressão coloquial equivalente que é: “mão aberta” (pessoa generosa) e “mão fechada” (pessoa avarenta). Logo, no século I em Israel, dizer que uma pessoa tinha “olho bom” significava dizer que era generosa para com os pobres e necessitados, dando esmolas e bens materiais. Por outro lado, o “olho mau” era o indivíduo mesquinho, sovina, incapaz de dividir o que tem ou de abrir a mão a alguém com necessidades materiais.
Essas expressões idiomáticas eram antigas já no tempo de Jesus e podem ser encontradas no livro de Provérbios. Em algumas versões em português, elas são identificadas e aparecem traduzidas corretamente. Provérbios 22:9 diz: “O generoso será abençoado, pois dá do seu pão ao pobre”. A palavra para generoso no original é ayin tovah (olho bom). Por outro lado, Provérbios 23:6 aconselha: “Não comas o pão do avarento, nem cobices os seus manjares gostosos”.[1] Aqui a palavra para avarento no original é ayin rah (olho mau).
Portanto, Jesus está ensinando como reconhecer o caráter de uma pessoa pela forma com que lida com suas finanças e recursos materiais. Se ela dá aos pobres e necessitados com generosidade, é uma pessoa boa (todo o seu corpo tem luz). Se ao contrário, é uma pessoa apegada aos bens materiais, egoísta, a ponto de não dividir nada do que tem nem se sensibiliza com os pobres e necessitados, é uma má pessoa por inteiro (todo o seu corpo estará em trevas). Uma vez interpretada corretamente a passagem, a lição que podemos extrair é que, sob o ponto de vista de Deus, a maneira com que uma pessoa lida com suas finanças e recursos materiais é um imenso indicador de sua vida espiritual.
Ao usar o grego como língua principal para interpretar verdades que foram ensinadas originalmente no hebraico e, em menor grau, em aramaico, fez com que a Igreja fosse dividida em várias doutrinas. Some-se a isso o pensamento helenista que se impôs sobre a Igreja, bem como o paganismo nele entranhado, e temos a explicação para tantos desvios doutrinários bem como inúmeras divergências que assolam o cristianismo.
Se tão somente a Igreja não tivesse se apartado de suas raízes, o cristianismo não seria tão dividido como é hoje. Não se pode compreender a essência das palavras e ensinamentos de Jesus se não nos voltarmos para o contexto cultural de sua época, em especial, para a língua hebraica falada em seus dias, para a cultura rabínica da qual Ele fez parte e, principalmente, para a Torá, os Profetas e demais livros do Velho Testamento, tão desconhecidos e ignorados por muitos cristãos de hoje.
[1] Edição JFA Revisada. Ainda é possível encontrar traduções literais nessas passagens em outras versões.
Extraído e adaptado do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo (Vol. 1).
Referências
David Bivin e Roy Blizzard, Jr. Understanding the Difficult Words of Jesus, (Shippensburg, PA: Destiny Image Publishers, 2002).
Weston W. Fields. Salted with Fire, Jerusalem Perspective, 1maio1988. https://www.jerusalemperspective.com/2192/#return-note-2192-1
Leia também:
Parabéns pelo excelente trabalho de informação. De nos trazer clareza sobre a língua hebraica.
Cada dia mais apaixonada por Jesus e pelo hebraico.
#partiuIsrael
Obrigado, Carmen. O livro, o blog e demais mídias da Oliveira Natural foram criados com essa finalidade. Shalom!
Estou sendo muito edificada com essas informações, tem me dado um novo entendimento sobre alguns versículos! Parabéns, meu irmão, por esse trabalho! A paz do Senhor Jesus!
Obrigado, Alda. As raízes judaicas enriquecem nosso conhecimento bíblico e nos aproximam ainda mais do nosso Messias. Shalom!
Parabéns, professor, pela linda explicação. São enriquecedores seus ensinamentos. Amo a língua hebraica (ainda vou fazer o curso). Obrigada.
Grato, Lêda! Que bom saber que está sendo eriquecedor para você. O hebraico realmente é uma língua fascinante e única.
Um cordial abraço e shalom!
Mais um pouco do que nos aguarda quando aprendemos mais sobre a língua, a cultura e os costumes hebraico da epoca de Yeshua. Obrigado Getúlio pelos ensinamentos.
Caro Paulo, grato pelo comentário. Nossas raízes judaicas iluminam nosso entendimento sobre os Evangelhos. Shalom!