O Dia Trágico de Tisha B’Av

O Dia Trágico de Tisha B’Av

17 de Julho, 2021 0 Por Getúlio Cidade

Esta é a data mais trágica do calendário judaico: Tisha B’Av, o nono dia do mês de Av. É uma data considerada amaldiçoada pelo povo judeu dada a sequência de eventos calamitosos na história de Israel que ocorreram nesse dia em diferentes épocas. Vamos conhecer um pouco mais sobre o dia trágico de Tisha B’Av.

Entre muitas calamidades que recaíram sobre o povo judeu, esta data marca a destruição do Primeiro Templo (586 a.C) e do Segundo Templo (70 d.C). Sim, por mais incrível que possa parecer, a destruição de ambos se deu no mesmo dia e período, embora com seis séculos de interstício. O término cruel da Revolta de Shimon Bar Kochba pelos romanos, em 135 d.C, com a morte por esquartejamento em massa dos insurretos ocorreu em Tisha B’Av.

A expulsão dos judeus em 1290 da Inglaterra e, em 1492 da Espanha pelos reis Isabel e Fernando, durante a Inquisição espanhola, também ocorreu nesse dia tenebroso da História. Essa data marcou outros eventos cataclísmicos na Idade Média como as terríveis Cruzadas que visavam “libertar” Jerusalém das mãos dos judeus e não passaram de pura tentativa de extermínio de seu povo por parte da Igreja.  

Na História Contemporânea, há calamidades mais recentes ocorridas no mesmo Tisha B’Av. A Primeira Guerra Mundial, em 1914, que teve sua continuidade com a Segunda Guerra,[1] cuja marca maior foi o Holocausto de seis milhões de judeus, beirando a extinção dos judeus na Europa, teve seu início em Tisha B’Av. A aprovação formal da Solução Final dos nazistas para exterminar os judeus da face da Terra, dia em que as câmaras de gás de Treblinka começaram a operar em 1942, dando início ao Holocausto, ocorreu em Tisha B’Av.[2] A deportação em massa de judeus do Gueto de Varsóvia para os campos de concentração também se iniciou no fatídico Tisha B’Av.

O Arco de Tito, em Roma, ilustra a vitória do Império Romano na tomada de Jerusalém em 70 d.C. Em destaque, a Menorah (candelabro) sendo levada pelos romanos durante a destruição do Segundo Templo, ocorrida em Tisha B’Av.

UM DIA DE LAMENTO

Nesse dia, judeus do mundo inteiro se lamentam pelas repetidas tragédias e jejuam por todo o dia, abstendo-se de alimentos desde o pôr-do-sol que marca o início de Tisha B’Av. É um dia de reflexão e luto nacional, quando se roga a Deus por misericórdia e proteção sobre Israel. Trata-se de um jejum muito mais abrangente que envolve também a abstenção de qualquer coisa que possa satisfazer o corpo. No Tisha B’Av, não se usa perfume ou qualquer tipo de cosmético, não se usa couro ou qualquer roupa que contenha algum luxo, não se usa sapatos confortáveis, os casais se abstêm de relações íntimas e é vedada qualquer atividade de entretenimento. Os cinemas e restaurantes ficam fechados ao público bem como qualquer local de diversão.

Evita-se a prática de esportes ou qualquer atividade que incorra algum risco como, por exemplo, nadar no mar ou fazer escalada. Pelo mesmo motivo, não se agendam cirurgias. Tisha B’Av não é feriado nacional, o trabalho é livre, mas é uma data tida com grande pesar e tristeza. Absolutamente, nenhum casamento é realizado nesse dia por motivos óbvios. Há um senso de tragédia pendente sobre toda a nação, uma indagação coletiva sobre qual o próximo mal que virá sobre Israel nesse dia.

Por que  Tisha B’Av é uma data que marca tantas tragédias sobre Israel e inspira tanto temor ao povo judeu? De acordo com a tradição, foi no dia nove do mês de Av que os doze espias voltaram com o relato funesto para o povo de Israel no deserto do Sinai, exceção feita a Josué e Calebe, insuflando pavor, pânico e rebeldia ao coração do povo. Essa reação de incredulidade perante a promessa divina de conquista foi o que levou Deus a impedir a entrada de toda aquela geração na Terra Prometida. O que era para ser um breve trajeto no deserto se tornou em uma peregrinação de quarenta anos e na morte de uma geração inteira que não pôde colocar os pés em Canaã.

O livro de Números conta que, ao ouvir o infame relato dos espias, “então toda a congregação levantou a sua voz; e o povo chorou naquela noite” Números 14:1. O Talmude contém cálculos para mostrar que aquela noite foi a noite de Tisha B’Av (9 do mês Av). E afirma que Deus, ao ouvir o choro, disse ao povo: “Vocês choraram sem necessidade nessa noite e, portanto, Eu estabelecerei uma verdadeira tragédia sobre a qual vocês chorarão nas gerações futuras”.[3]

De fato, a probabilidade de que todas essas tragédias, e outras que não sejam de conhecimento geral, tenham ocorrido, ao longo da história de Israel, no mesmo dia do calendário é ínfima para não dizer zero. Não pode ser uma mera coincidência. Tisha B’Av é considerado um dia amaldiçoado por Deus para lidar com Israel. Daí o temor e a humilhação dele decorrentes para que Deus se compadeça de seu povo e o poupe de futuras catástrofes.

“AS SUAS MISERICÓRDIAS NÃO TÊM FIM”

O pesar e o luto de Tisha B’Av são tão intensos que nem mesmo a Torá é ensinada nas sinagogas nesse dia. Por outro lado, é costume e quase uma ordenança que se leia todo o livro de Lamentações de Jeremias. Este livro foi escrito pelo profeta no período da destruição do Primeiro Templo pelos babilônios, ocasião em que ocorreu o primeiro exílio. Como o próprio nome diz, é um escrito de luto pela destruição do Templo, de Jerusalém e de todos os males ocorridos sobre o povo de Judá.

O nome do livro de Lamentações em hebraico é Eicha e seu significado é: “Como algo assim pôde acontecer conosco?”. É uma alusão à destruição do Primeiro Templo (Beit HaMikdash), à tomada de Jerusalém por uma nação estrangeira e às demais catástrofes dela advindas. Um verso que bem define esse sentimento de pesar é: “Com lágrimas se consumiram os meus olhos, turbada está a minha alma, e o meu coração se derramou de angústia por causa da calamidade da filha do meu povo; pois desfalecem os meninos e as crianças de peito pelas ruas da cidade” Lamentações 2:11.

Em meio a tantos acontecimentos tenebrosos, ocorridos ao longo das eras nesse dia de Tisha B’Av, há um contraste que aponta para além de todo sofrimento e tragédia que se possa ter lembrança. A palavra Av em hebraico é pai. Esse é o mês do Pai que age com justiça e retidão, mas que também é amoroso e misericordioso. Parece uma ironia que, justamente nesse mês, tantos acontecimentos terríveis tenham sobrevindo a Israel. Apenas parece, mas não é.

Ainda que Ele permita que se abata sobre seus filhos uma ou mais calamidades, sua promessa de sempre estar a nosso lado deve superar toda dor. Como foi com o rabino Paulo, o apóstolo dos gentios que, em meio à tribulação, compreendeu que sua graça consigo bastava, assim deve ser conosco. Em tempos de tragédia, precisamos aceitar que Deus jamais perde o controle da situação, embora possa parecer o contrário, e que sua graça para conosco é o suficiente.

Precisamos enxergar seu amor e sua misericórdia mesmo durante tempos difíceis, quando catástrofes ocorrem ou quando somos disciplinados pelo Senhor. Como disse Moisés ao povo no deserto: “Sabe, pois, no teu coração, que, como um homem disciplina a seu filho, assim te disciplina o Senhor, teu Deus” Deuteronômio 8:5. Esse é o mesmo Pai (Av) que guardou Israel em sua peregrinação no deserto e que, por milênios, o tem guardado até hoje, bem como todo aquele que nele crê e confia.

Foi por esse motivo e plenamente consciente dessa verdade que Jeremias, ao compor suas lamentações, parece fazer uma pausa de todo luto e angústia para escrever: “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança. As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade” Lamentações 3:21-23.


[1] Muitos historiadores consideram a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais como uma só, separadas por um intervalo de cerca de vinte anos.

[2] Aryeh Kaplan, Handbook of Jewish History Thought (Maznaim, 1979), vol. II, p. 339-340.

[3] Talmud Taanit 29a:7


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