Lições de Quarenta Anos no Deserto
O dia 2 de agosto de 2021 marcou quarenta anos de meu batismo nas águas, quando ainda era um adolescente. Em uma nota pessoal e olhando para trás, aquele ato simples e revestido de simbolismo foi um dos eventos mais importantes de minha vida. No aniversário de quarenta anos daquele memorável dia, a comparação com a travessia de Israel é inevitável. Assim, seria oportuno fazer algumas reflexões sobre o aprendizado das lições de quarenta anos no deserto vividas por Israel e que não devem ser ignoradas.
Costuma-se dizer que a peregrinação de Israel no deserto, antes de entrar em Canaã — a Terra Prometida —, aponta para nossa caminhada terrena, cercada de lutas e dificuldades, altos e baixos, e que precede nossa entrada na pátria celestial. O número quarenta na Bíblia representa o encerramento de um ciclo.
O dilúvio durou quarenta dias, extirpando toda a vida da Terra, antes que viesse uma renovação da natureza. Israel aguardou quarenta dias no sopé do Sinai antes de receber as tábuas dos mandamentos das mãos de Moisés que, por sua vez, jejuou quarenta dias. O próprio Jesus jejuou quarenta dias no deserto, onde foi tentado e venceu o diabo. O ciclo da vida necessário para trocar uma geração era de quarenta anos (Números 32:13). Quarenta aponta para mudança e transição. Toda vez que esse número aparece na Bíblia significa que algo relevante ocorre em seguida.
Nesse contexto, foi escrito o livro de Deuteronômio. Israel completara os quarenta anos de peregrinação desde a saída do Egito, atravessando a península do Sinai. Agora todo o povo está acampado nas campinas de Moabe, às margens do lado leste do Jordão, prestes a atravessá-lo para herdar a Terra Prometida. Durante esses dias, Moisés recapitula todos os quarenta anos anteriores vividos por Israel no deserto e registra tudo nesse último livro da Torá.
Deuteronômio é um livro especial, não somente na Torá, mas em toda a Bíblia. Nele, Moisés revisa os Dez Mandamentos bem como inúmeras ordenanças, orientando o povo a como se portar na terra e obter o favor do Senhor sobre si. É nesse livro, por exemplo, que há o conceito de circuncisão do coração (Dt. 10:16), o que é mencionado séculos depois pelo apóstolo Paulo no Novo Testamento. É também nele que se encontra a maior declaração de fé do judaísmo: o Shemá (Dt. 6:4-9), pronunciada duas vezes por dia nas orações e mencionada inclusive por Jesus nos Evangelhos, em uma das maiores de suas afirmações rabínicas.
Não por acaso, há quarenta anos, na semana de meu batismo, a porção da Torá lida no mundo inteiro era Parashat Devarim que marca exatamente o início da leitura de Deuteronômio. “Estas são as palavras que Moisés falou a todo o Israel além do Jordão, no deserto, na planície defronte do Mar Vermelho […] Deuteronômio 1:1. Digo “não por acaso” porque não é mera coincidência. No Reino de Deus não existem coincidências e Ele sabia o impacto que isso teria em mim quarenta anos depois.
Ao ler esse livro tão especial em uma data tão especial, as palavras de Moisés parecem ser endereçadas a mim. Ao ler a retrospectiva dos quarenta anos de Israel no deserto, estou de certa forma lendo a minha retrospectiva, recebendo das mesmas exortações e sendo renovado pela mesma esperança. Moisés enfatiza o amor e a justiça de Deus para com Israel, relembra seus passos no deserto, seus fracassos, seus pecados e as disciplinas decorrentes impostas por Ele. E reforça a aliança feita no Sinai com toda a nação. Essas reflexões são necessárias a Israel antes de entrar e possuir a Terra Prometida, a fim de se lembrar de sua história e não cometer os mesmos erros do passado. Aliás, o verbo lembrar é frequentemente usado por Moisés em Deuteronômio, mais que em todos os livros da Torá.
“E TE LEMBRARÁS DE TODO O CAMINHO”
Acredito que o capítulo 8 é o que melhor resume o que foi a peregrinação pelo Sinai. Ele contém a mensagem central do livro que é se lembrar de todas as aflições e dores vividas no deserto para manter um coração humilhado diante de Deus. “E te lembrarás de todo o caminho, pelo qual o Senhor teu Deus te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar, e te provar, para saber o que estava no teu coração, se guardarias os seus mandamentos, ou não” Deuteronômio 8:2.
Moisés mostra a Israel que todo o sofrimento tinha um propósito divino, mas somente agora está sendo revelado. Em contrapartida, Deus não deixou faltar nada e supriu todas as necessidades do povo, além de prover proteção. Em nossa caminhada terrena, o mesmo acontece. Ficamos frustrados com expectativas não correspondidas e murmuramos ou desistimos, sem perceber que estamos sendo testados diariamente.
“Sabes, pois, no teu coração que, como um homem castiga a seu filho, assim te castiga o Senhor teu Deus” Deuteronômio 8:5. Aqui jaz talvez a maior dificuldade da vida cristã: enxergar situações que consistem em disciplina de Deus para nos corrigir. Embora não seja motivo de alegria, ser corrigido por Deus é sinal de amor e, mais que isso, um privilégio exclusivo apenas para os filhos.
“Para não suceder que […] se eleve o teu coração e te esqueças do Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão; que te guiou por aquele grande e terrível deserto de serpentes ardentes, de escorpiões e de terra seca, em que não havia água; e tirou água para ti da rocha pederneira; que no deserto te sustentou com maná, que teus pais não conheceram; para te humilhar, e para te provar, para no fim te fazer bem” Deuteronômio 8:12-16.
A mensagem de Moisés é para que Israel nunca se esqueça de seu estado original, de como era escravo e de como Deus os libertou. Isso é para que, uma vez usufruindo das bênçãos da terra e de uma vida próspera, não viessem a cair no engano do orgulho e se afastassem do Senhor. É mais fácil não sucumbir ante uma dura provação ou a algum tipo de sofrimento prolongado. Não faltam histórias de superação que o comprovem. Israel sofreu todo tipo de provação no deserto, física e espiritual, mas superou a todas como povo, especialmente pela misericórdia de Deus e pela contínua intercessão de Moisés.
Agora Moisés mostra ao povo que Deus os humilhara com o claro propósito de prová-los e com o intuito de fazer-lhes o bem no final. Deus não é nenhum carrasco que se diverte infligindo sofrimento ao homem. Seu objetivo final é sempre nos fazer o bem, mesmo em meio ao sofrimento, por mais paradoxal que isso pareça. Por outro lado, não é tão fácil manter esse mesmo coração humilhado quando se tem uma vida próspera em todos os níveis. A tentação de bater no peito e se achar autossuficiente é grande. E aí reside o perigo; um passo em falso e a queda é inevitável. O alerta de Moisés vale para todas as eras e todos os homens. Lembrar de onde viemos e o que Deus fez por nós deve ser um exercício constante, pois nos ajuda a manter a postura correta de humildade.
A INEGÁVEL PRESENÇA NO DESERTO
No início do livro, em sua retrospectiva, Moisés lembra ao povo que o Senhor o levou pelo deserto como um homem leva seu filho (Dt. 1:31). O verbo traduzido como levar é נשא (nasa) que significa literalmente erguer e carregar. A ideia é mostrar que Deus carregou Israel no colo como um filho pequeno que precisa ser assim levado em meio a uma caminhada longa, cansativa e perigosa, como era o deserto. Que bela imagem de amor paternal!
Moisés acrescenta que o Senhor foi adiante deles em toda a jornada, de noite na coluna de fogo e, de dia, na nuvem que os encobria (Dt. 1:33). O fogo e a nuvem de glória eram sinais explícitos da presença de Deus no meio do povo. Ambos traziam proteção e conforto. O fogo, durante a noite, protegia o acampamento das quedas brutais para temperaturas congelantes. A nuvem, durante o dia, provia sombra e refrigério do calor causticante do deserto. Por mais dificuldades que atravessassem, por mais dura que fosse a peregrinação, tais sinais eram uma amostra visível, uma mensagem silenciosa do Pai lhes dizendo: Não temam; eu estou com vocês!
Há muitos anos, atravessei todo o deserto do Sinai de ônibus durante alguns dias. Estive nos mesmos locais em que esteve o povo de Israel em sua travessia como Mara, Refidim e no próprio Monte Sinai. O que mais chamou minha atenção, no entanto, não estava visível aos olhos físicos, mas era uma agradável sensação de uma maravilhosa presença por todas aquelas terras áridas. Eu a podia sentir durante o intenso calor durante o dia bem como na friagem da noite. A nuvem de glória estivera por quarenta anos, dia após dia, naquelas paragens. Aquela presença que se fazia sentir por todo o deserto era o rastro da gloriosa nuvem de Deus conduzindo seu povo. Milênios se passaram, mas a nuvem de glória é incorruptível ao tempo e às circunstâncias, ainda que sejam apenas os vestígios de sua passagem.
Essa experiência que guardo com um carinho inestimável me fez compreender um pouco mais as palavras de Moisés nesse livro magnífico que é Deuteronômio. O deserto certamente não é um lugar confortável para se estar, muito menos para se habitar. Contudo, aquele deserto é especial. E o que o tornou assim foi a inegável presença de Deus junto a seu povo. O que torna nosso deserto pessoal especial é a presença de Deus junto a nós. É justamente esse apelo da presença e da fidelidade de Deus que Moisés faz a Israel para não se esquecer, a fim de que não “se ensoberbeça o seu coração”.
Israel saiu do deserto melhor do que quando lá entrou. As disciplinas impostas por Deus não foram simples, como no caso do bezerro de ouro, na revolta de Coré, nas murmurações por carne ou na reação ao infame relato dos doze espias. Em todas, houve muitas mortes e tratamento severo. Contudo, em cada uma delas, via-se o zelo do Senhor por corrigir e endireitar um povo de “dura cerviz”, a fim de prepará-lo para conquistar a Terra Prometida. O verbo para castigar ou disciplinar em Deuteronômio 8:5 é יסר (yasar), a mesma raiz do substantivo מוסר (musar) que significa castigo, mas também significa princípios ou moral. Logo, a disciplina de Deus visa a nos ensinar os princípios e valores morais de sua Palavra. Por isso, Davi diz: “Foi-me bom ter sido afligido, para que aprendesse os teus estatutos” Salmos 119:71.
UM AMOR CONSTRANGEDOR
Diz a tradição que Israel permaneceu cerca de um mês nas margens do Jordão, tempo em que Moisés fez essa retrospectiva para todo o povo, registrando-a no livro de Deuteronômio. Em seguida, ele subiu ao Monte Nebo para ser recolhido por Deus. Ao ler essas porções da Torá e imaginar que o início da leitura de Deuteronômio (Devarim) pelo calendário judaico coincidiu com a data de meu batismo há quarenta anos, não há como permanecer indiferente. Vejo-me acampado nas campinas de Moabe, ouvindo as mesmas palavras com todo Israel e aplicando-as à minha própria peregrinação terrena, o que me acarreta uma avalanche de sentimentos.
Como Israel, posso olhar para trás e avaliar os últimos quarenta anos desde aquele longínquo 2 de agosto. Foram dias, meses e anos de dificuldades, frustrações, privações, lágrimas, lutas intermináveis em meio a “serpentes e escorpiões”, tropeços e fracassos, de tempestades e tribulações. Porém, em cada uma dessas ocasiões, fui socorrido e acolhido pelo alto. Seus olhos de Pastor nunca me perderam de vista, embora eu, por diversas vezes, parecesse perdido ou começasse a me desviar do caminho. Nesses momentos mais árduos, é que Ele aparecia, erguia-me e me carregava no colo com seus braços de Pai. Não tinha a ver com nenhum merecimento meu, mas exclusivamente com sua misericórdia e com seu amor, um amor constrangedor.
Foram-me necessárias muitas disciplinas e correções nessa longa jornada para que pudesse aprender seus mandamentos, não com a mente apenas, mas também de coração e prática, práticas muitas vezes dolorosas, mas edificantes. Foram essenciais para forjar minha alma e me manter firme no caminho apontado por Ele. Nessa terra seca, a nuvem de sua presença sempre me acompanhou, trazendo refrigério e vigor em meio às batalhas. Ele me fez passar por tudo isso para, no final, me fazer o bem como a Israel. Como Moisés ensinou ao povo em Deuteronômio, nenhuma lição deve ser desperdiçada. As lições aprendidas no deserto são duradouras e têm um peso de glória eterno.
Sem conseguir reter as lágrimas, minha memória se volta para aquela distante manhã ensolarada de domingo, dia 2 de agosto de 1981. Eu vestia um roupão branco e me achegava no limiar do batistério, enquanto a igreja estava toda de pé cantando louvores. Meu pastor me aguardava dentro d’água e sorriu quando me viu, ajudando-me a descer os degraus sem, no entanto, parar de entoar o cântico que tomava toda a igreja. Eu estava nervoso demais para cantar; sabia que tomava uma decisão muito importante e que não iria voltar atrás, embora ainda fosse um garoto.
Ao ser mergulhado, senti o corpo tremer com o choque da água gelada do inverno. Ao mesmo tempo, senti uma alegria incrível e inexplicável. Meu corpo tremia de frio, mas meu peito ardia por dentro, sentia minha face vermelha e quente como se estivesse diante do fogo. Tive a convicção de que era uma nova criatura e senti esse amor inexprimível me envolvendo por inteiro. Era o mesmo amor constrangedor que sustentou e conduziu Israel por quarenta anos pelo deserto. Era o mesmo amor constrangedor que me carregaria por esses quarenta anos de peregrinação até chegar ao dia de hoje, corrigindo-me, protegendo-me e guardando-me, sem me deixar cair de seus braços, nem deixar escapar de mim a preciosa nuvem de sua presença. Se pudesse voltar no tempo, faria tudo de novo. Assim como Israel, provei e vi que o Senhor é bom!
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muito bom!
Grato, Weide. Shalom!