A Páscoa e o Tempo de Nossa Liberdade
Hoje é 10 de Nisan, o primeiro e mais especial de todos os meses. Embora o ano civil de Israel comece em Tishrei, em Rosh HaShanah, a Torá determina que a contagem do ano se inicie em primeiro de Nisan, estabelecendo assim o início do ano bíblico. Nisan é conhecido como z’man cherutenu, tempo de nossa liberdade ou de nossa redenção. É quando se celebra uma das principais Festas do Senhor e que marca a saída do Egito. Conheçamos um pouco mais sobre o mês da Páscoa e o tempo de nossa liberdade.
Ainda no Egito, referindo-se a Nisan, Deus determinou a Moisés: “Este deverá ser o primeiro mês do ano para vocês” Êxodo 12:2. Nisan é conhecido como cabeça ou rei de todos os meses, pois a palavra em hebraico lachem (para vocês) é formada pelas mesmas letras da palavra rei (melech). Há um comentário rabínico interessante a esse respeito: “Isso pode ser comparado ao caso de um rei que possuía um relógio. Quando o filho cresceu, o rei lhe deu de presente o relógio tão valioso. Do mesmo modo, Deus disse ao povo de Israel: Até agora, o estabelecimento dos meses e dos anos estava em minhas mãos. De agora em diante, eu entrego em suas mãos”.[1] Isso define a relevância do mês de Nisan para Deus e para Israel.
Além da libertação do Egito, o mês de Nisan marca eventos importantes para Israel como o nascimento do patriarca Isaque. Segundo a tradição, foi também nesse mês que ele foi amarrado por Abraão como oferta sobre o altar, assim como o mesmo mês em que ele concedeu a bênção a seu filho Jacó. Em Nisan, saiu o decreto de Artaxerxes para que Jerusalém fosse reedificada sob a liderança de Neemias, após décadas de abandono.
A inauguração do Tabernáculo (Mishkan) no deserto se deu em primeiro de Nisan. Nesse exato dia, Arão começou a servir como sumo sacerdote, foi a primeira vez que desceu fogo do céu e a primeira vez em que os sacerdotes abençoaram o povo com a bênção sacerdotal, conforme Números 6:22-26. Sobretudo, foi esse o dia escolhido por Deus para estabelecer sua morada no meio do povo de Israel. Devido a seu histórico e por ser o mais importante dos meses, durante Nisan, paira uma expectativa por uma maior e mais intensa presença divina.
10 DE NISAN
Embora a Festa de Pesach (Páscoa) seja celebrada em oito dias, de 15 a 21 de Nisan (Festa dos Asmos), além do dia 14 que é o dia da preparação (Erev Pesach), considera-se todo o período do mês que a antecede também como sendo de preparação. Em particular, o dia 10 é especial, além do dia 14. Ele marcou o último Shabbat de Israel no Egito, antes da libertação que ocorreu na noite do dia 15.
A ordem de Deus a Moisés para cada família tomar um cordeiro e levar para casa deveria ser em 10 de Nisan, nem um dia antes, nem um dia depois (Êx 12:3). O carneiro, entre outros animais, era idolatrado no Egito antigo. O ato de se tomar um cordeiro e amarrá-lo em casa era uma afronta aos egípcios que, por sua vez, iriam querer se vingar dos israelitas. Entretanto, diz a tradição que Deus os impediu de causarem qualquer dano aos filhos de Israel, o que foi considerado um grande milagre. Por isso, até o dia de hoje, o Shabbat que precede Pesach é conhecido como Shabbat HaGadol ou Grande Sábado.
Vale ressaltar que o símbolo astrológico correspondente a esse mês é Áries e isso já era usado pelos egípcios, antes dessa ordenança. O carneiro era um símbolo de riqueza e poder. Por essa razão, fora transformado em objeto de veneração egípcia. É justamente esse ídolo que Adonai, o único Deus, manda seus filhos abaterem e sacrificarem a Ele, exatamente no mês de sua proeminência. Era uma maneira de declarar aos egípcios que a riqueza e o poder verdadeiros procedem unicamente do Deus de Israel.
Um evento muito importante ocorrido também no dia 10 de Nisan é a travessia do Jordão (Yarden), quando Israel chega à Terra Prometida após quarenta anos de peregrinação no Sinai (Js. 4:19). E é nesse exato dia que, cerca de 1.300 anos depois, Yeshua faz sua entrada triunfal dentro dos muros de Jerusalém, cumprindo literalmente a profecia de Zacarias 9:9. Assim como cada família tinha de tomar um cordeiro e levar para casa, onde ficaria preso até o dia do sacrifício pascal quatro dias mais tarde, Yeshua, o Cordeiro de Deus, também foi para a casa do Pai (o Templo), onde permaneceu nos dias seguintes pregando as boas novas do Reino de Deus até ser crucificado.
13 DE NISAN
Não poderia deixar de compartilhar uma descoberta que fiz ao examinar os acontecimentos no mês de Nisan nas Escrituras, enquanto escrevia esse texto. Na história de Purim, quando Hamã conseguiu autorização do rei persa para exterminar o povo judeu, ele expediu seu decreto maligno em 13 de Nisan (Et 3:12). Cinco séculos mais tarde, no mesmo 13 de Nisan, Judas traiu Yeshua ao buscar os principais sacerdotes para entregá-lo, conforme relata o Evangelho de Marcos, capítulo 14. Estariam esses eventos correlacionados? Sim, absolutamente.
O mal que Satanás, eterno inimigo de Deus, intentava realizar nesses dois acontecimentos foi totalmente revertido. No primeiro, em vez da aniquilação dos judeus, Hamã e seus inimigos foram envergonhados e mortos, enquanto sobre Israel veio livramento, triunfo e prosperidade. No segundo, a traição de Judas foi o caminho para que o deus desse século colocasse na cruz o Rei da Glória. No entanto, esse foi exatamente o modo preparado pelo Pai para trazer redenção a toda a humanidade, através do sacrifício de seu Filho único, como resultado de sua sabedoria, oculta em mistério, desconhecida de seus inimigos que, do contrário, jamais teriam crucificado o Senhor (1Co2:7-8).
Nas duas situações, o inimigo de Deus tentou eliminar o povo de Deus e o Filho de Deus, impedindo que alcançassem seus propósitos divinos. Esqueceu-se, porém, de que o Altíssimo pode todas as coisas e de que nenhum de seus planos pode ser frustrado (Jó 42:2). Logo, o contrário aconteceu e a maldição foi transformada em bênção (Dt. 23:5).
14 DE NISAN
O dia 14 de Nisan marca a data em que o sacrifício pascal foi oferecido por cada família israelita na véspera de saírem do Egito. Ali foi estabelecida a Festa de Pesach “por estatuto perpétuo”. O carneiro, símbolo da idolatria egípcia, jazia diante deles agora e seu sangue vertia dos umbrais de suas casas, um lembrete da proteção divina contra a décima praga que exterminaria todos os primogênitos dos egípcios.
O motivo de terem sido livres do anjo da morte fez com que os primogênitos de Israel fossem eternamente gratos a Adonai pelo dom da vida. Isso originou o costume do Jejum dos Primogênitos (Taanit Bechorot), realizado pelos primogênitos de Israel até hoje no dia 14 de Nisan. É um jejum leve, não com o rigor de Yom Kippur, pois Nisan é um mês de alegria, e visa demonstrar humildade e ações de graças a Deus.
O cordeiro pascal e todo o ritual que o envolvia certamente aponta para outro cordeiro muito superior, “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, conforme destacou João Batista (Jo 1:29). Seu abate deveria ser na tarde do dia 14 de Nisan, no horário do sacrifício vespertino, às quinze horas, mesmo horário em que Yeshua expirou na cruz, também em 14 de Nisan. Sua carne deveria ser comida por toda a família, assim como somos ordenados a comer da carne do Filho de Deus (Jo 6:51-53). Nenhum de seus ossos deveria ser quebrado assim como nenhum osso de Yeshua o foi, a despeito da terrível tortura que suportou (Jo 19:36). Assim como o sangue do cordeiro nos umbrais das portas livrava os israelitas da morte iminente, o sangue do Cordeiro Yeshua é capaz de proteger não apenas fisicamente, mas de limpar os pecados dos que nele creem e livrá-los da morte eterna.
UM POVO LIVRE
O pôr-do-sol de 14 de Nisan (que neste ano de 2022 coincidirá com o pôr-do-sol do dia 15 de abril) marca o início da Festa, quando começa o primeiro dia dos asmos (hamatzot). Daí por diante, são sete dias de celebração, onde nenhum fermento é permitido (na diáspora, a festa tem um dia adicional). O fermento (hametz) aponta para o pecado, o orgulho e a soberba de coração, que havia corrompido a nação egípcia e prossegue corrompendo a raça humana ao longo da História. A ausência do fermento aponta para a humildade e um coração puro, requisitos para se obter o favor de Deus. Compreende-se por que Yeshua tomou do pão asmo no seder de Pesach e disse que era seu corpo.
Segundo a tradição, no primeiro seder de Israel, a carne do cordeiro, símbolo da idolatria dos egípcios, o pão asmo (matzah) feito às pressas, sem o tão apreciado fermento, e as ervas amargas comidas com humildade possuem forte simbologia. Esses alimentos apontavam para a ideia de que os israelitas não mais faziam parte da sociedade egípcia. Um rompimento havia sido feito e sem nenhuma possibilidade de retorno. Israel, doravante, era um povo livre. Não restava mais o que fazer na terra de sua escravidão. A morte dos primogênitos era a senha para todo o povo sair às pressas rumo à liberdade, ainda na noite do dia 15 de Nisan. Nem mais um minuto de espera.
Por isso, na mesa do seder, é mandatório que todos se reclinem sobre o braço esquerdo à mesa e comam confortavelmente com a mão direita, sem pressa e recontando a história às gerações mais jovens de como Adonai os resgatou do jugo do sofrimento. Todos devem comer como se fossem reis, pois para isso foram livres. Não é disso que fala a Páscoa e o tempo de nossa liberdade? “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.” João 8:36
Quando recebemos o sacrifício do Cordeiro de Deus em nossas vidas, somos libertos do jugo do pecado e passamos a ser um povo livre. Em Nisan, o tempo de nossa redenção e de nossa liberdade, é o tempo mais propício não apenas para relembrar esse livramento da morte eterna, mas de receber o Pão Vivo que desceu do Céu para entrar em nosso lar e ter comunhão conosco. Ele mesmo faz esse convite: “Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”. Apocalipse 3:20
!חג פסח שמח
Hag Pesach Sameach! (Feliz Páscoa!)
[1] Yakult Shimoni 190.
Nessa época, recebemos muitos questionamentos se é conveniente realizar a Ceia do Senhor na noite de seder. A resposta é um retumbante sim! Afinal, qual a melhor época e o melhor dia do ano para fazer isso do que aquele que o próprio Deus escolheu em seu calendário para oferecer seu único Filho por sacrifício pelos nossos pecados? Isso é feito em família e com irmãos na fé que se queira convidar. Afinal, o Cordeiro da Páscoa é suficiente para todos (Êx. 12:3-4).
Para saber com maior profundidade sobre a Festa da Páscoa e outras Festas bíblicas, adquira o livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo (disponível em cópia física ou e-book)
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Leitura e Meditação para a Páscoa – Parte 1
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Artigo muito bom, Getúlio, como aliás, todos os que tenho lido, e como o livro Oliveira Natural, que já adquiri e li com muito gosto! Tenho uma questão, para a qual não encontrei ainda resposta: se os cordeiros pascais só eram mortos a 14, com que cordeiro é que Jesus celebrou a Páscoa com os seus discípulos? Antecipou a Páscoa, o cordeiro, etc, para poder ser sacrificado no dia 14, ou celebrou a ceia sem cordeiro? Qual a sua opinião? Um abraço, Teresa
Querida Teresa,
Shalom e muito obrigado pelas palavras! Seu questionamento é bem pertinente. Embora haja uma divergência de dia quanto à celebração do seder por Jesus entre João e os demais Evangelhos, o de João é bem sequenciado e nos mostra que Ele foi crucificado em 14 de Nisan, pois esse era o dia da preparação da Páscoa (Jo.19:14), quando os cordeiros pascais eram sacrificados, como você bem observou. O seder se dava no início do dia 15 de Nisan (tendo em mente que o dia bíblico se inicia ao pôr-do-sol). Jesus foi crucificado realmente à tarde do dia 14 e, no início da noite, que já era o dia 15, realizava-se o seder. Isso explica porque os judeus que o conduziram ao pretório não entraram no local a fim de não se contaminarem e poderem “comer a páscoa”, conforme João 18:28. Assim, fica claro que Jesus, sabendo que seria morto, antecipou o seder em um dia, realizando-o na noite do dia 14 (após o pôr-do-sol do dia 13). Por isso, João inicia o capítulo 13 falando dessa refeição como sendo “antes da Festa da Páscoa”.
Portanto, Jesus teria celebrado o seder sem o cordeiro, pois o mesmo só poderia ser morto no dia 14. E, de fato, não há nenhuma menção ao cordeiro pelos Evangelhos nessa última ceia. Por outro lado, esse fato teria sido algo muito significativo, pois seria uma forma de dizer aos discípulos: Eu sou o Cordeiro da Páscoa! Isso foi reforçado quando Ele partiu o pão e disse que era sua carne. Ora, a única carne comida no seder era a do cordeiro.
Na tarde seguinte, quando viram que Ele expirara na cruz na hora nona (cerca de 15:00h), mesma hora do sacrifício vespertino no Templo em que o cordeiro era morto por toda a nação, essa associação deve ter ficado clara como água na mente dos discípulos. Posteriormente, também devem ter lembrado das palavras de João Batista. Ela era o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Penso que tenha sido assim.
Um cordial abraço e Feliz Páscoa!
Getúlio
Faz todo o sentido, Getúlio, e era também essa a minha intuição! Que maravilha, os mistérios de Deus.
Feliz Páscoa!
Teresa
Sim, é uma maravilha! E quantos mistérios ainda há por serem revelados por Ele, não é?
Shalom!
Artigo muito esclarecedor, assim como o livro que já concluí a leitura e me auxiliou a conhecer ainda mais as raízes judaicas, e compreender claramente minha posição na Oliveira. Desejo manter sempre a postura correta nessa árvore.
Que bom, Andrea! Somos ramos da mesma Oliveira.
Feliz Páscoa e shalom!
Getúlio, como é feita a contagem de 14 de Nissan? Ela coincide com que data nesse ano de 2024?
Olá, Camilla. A equivalência muda todo ano porque o calendário judaico é lunar. Neste ano de 2024, 14 de Nisan será no dia 22 de abril que, por sinal, é meu aniversário.