A Páscoa e os Quatro Cálices do Seder

A Páscoa e os Quatro Cálices do Seder

27 de Março, 2021 25 Por Getúlio Cidade

Ao pôr-do-sol de 26/03/21, inicia-se o dia 14 de Nisan, conhecido como Dia da Preparação, e que antecede a Páscoa do Senhor (Pesach). É um dia muito especial, pois, dentre todos os preparativos, ocorria o sacrifício dos cordeiros por cada família, além da oferta do cordeiro pascoal por toda a nação de Israel, conduzido no altar do Templo de Jerusalém no horário do sacrifício vespertino, às três horas da tarde. Foi nesse exato dia e horário que Yeshua, o Cordeiro de Deus, morreu na cruz do Calvário como oferta da Páscoa (Korban Pesach). Na noite que marca o início desse dia, Ele participou com seus discípulos, como é costume de todas as famílias judias até hoje, do seder de Pesach, uma refeição tradicional de milênios que conta a história milagrosa da libertação de Israel do Egito, contida no livro do Êxodo. Durante o seder, há quatro cálices de vinho ou suco de uva que são bebidos pelos participantes. E é sobre eles que gostaria de discorrer.  

É importante sublinhar que Jesus como judeu observava todas as Festas do Senhor. Há registro nos Evangelhos dele subindo a Jerusalém para celebrá-las desde menino, conforme o mandamento, especialmente as três grandes Festas (Páscoa, Pentecoste e Tabernáculos). Sua participação nesse seder de sua última Páscoa na Terra, juntamente com os discípulos, comprova isso.

Os quatro cálices estão baseados em quatro promessas contidas em Êxodo 6:6,7 e cada um deles aponta para o Messias de Israel. O primeiro é o cálice da santificação e está na passagem que diz: “Eu sou o Senhor, e vos tirarei de debaixo das cargas dos egípcios”. A palavra santificação (kedushá) significa separação. Deus separa Israel como nação para servi-lo. Uma nação não poderia servir o Senhor sendo escrava, daí a promessa de separação, pois é preciso sair debaixo do jugo da servidão do Egito. Este é um símbolo do mundo e da vida pecaminosa. Aqui está claramente a figura do Messias que nos liberta do jugo do pecado para servi-lo. Yeshua é a nossa santificação (1Coríntios 1:30).

Com essa liberdade que nos é dada pelo livramento “das cargas dos egípcios”, advém uma responsabilidade. Ser livre não deve ser confundido com se fazer qualquer coisa que se queira e essa não é a ideia de liberdade da Torá. Jesus ensinou que todo aquele que peca é escravo do pecado (João 8:34). Porém, se o Filho nos libertar, somos verdadeiramente livres (João 8:36). A palavra liberdade (חרות – cherut) sugere ser livre para fazer o que deve ser feito, ou ter o poder de agir com responsabilidade. Somente os que obedecem a Deus são de fato pessoas livres. O mês de Nisan, quando ocorre a Páscoa, além de ser conhecido por “tempo de nossa redenção”, também é conhecido por “tempo de nossa liberdade” (z’man cheruteinu).

A segunda porção a ser bebida no seder é o cálice do livramento ou do juízo. Está baseado na passagem: “livrar-vos-ei da sua servidão”. Tal cálice se refere às pragas que Deus lançou sobre o Egito a fim de humilhar faraó para que deixasse Israel partir. Todos os cálices do seder são bebidos com alegria. Esse, porém, é bebido com menos alegria, se é que se pode dizer assim. O fato das pragas, especialmente a dos primogênitos, trazer tragédia e destruição sobre seres humanos, mesmo que esses fossem inimigos de Israel, não deve ser motivo de regozijo, mas de temor a Deus.

A morte de faraó e seu exército no Mar Vermelho também é visto com pesar, não obstante o livramento de Deus. De um modo interessante, a tradição judaica relata que, quando os egípcios se afogavam no mar, os anjos começaram a exultar e a louvar a Deus com alegria. Porém, o Senhor os repreendeu, dizendo: “Os egípcios, obra de minhas mãos, estão se afogando e vocês cantando diante de mim?”.[1] De fato, Deus não se alegra com a destruição dos ímpios, como está escrito: “Vivo eu, diz o Senhor DEUS, que não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho, e viva” Ezequiel 33:11. Por esse motivo, ao se pronunciar cada uma das pragas que atingiram os egípcios, derramam-se algumas gotas do cálice em sinal de pesar pelas vidas perdidas. Em meio ao juízo de Deus sobre vidas humanas, a alegria não pode ser plena, daí a necessidade de se esvaziar um pouco esse cálice.  

Enquanto se bebe dos cálices e se come dos alimentos do seder, a história do Êxodo é contada e cantada, numa extensa liturgia, o que foi seguido por Jesus e seus discípulos. É uma refeição longa e muito rica em detalhes, levando-se horas ao redor da mesa. Sabemos que Jesus não somente não abriu mão desse tempo com os discípulos, bem como aproveitou a oportunidade para transmitir grandes ensinamentos que foram registrados nos Evangelhos, especialmente no de João. Na sequência do seder, antes do terceiro cálice, é o momento de se partir e comer o matzah (pão asmo), introduzindo-se a festa de sete dias dos asmos. Há muito que se falar sobre esse pão tão especial que tem sido comido em todas as gerações desde que Israel deixou o Egito há cerca de 3.300 anos.

O mais relevante é que, nesse momento de se comer o asmo, Yeshua o toma nas mãos e recita a bênção do pão. Observe que ele não abençoa o pão, como está na maioria das traduções, mas recita a bênção milenar em ação de graças pelo pão, que diz: “Bendito és tu, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que faz o pão brotar da terra”. Em seguida, reparte-o e o distribui entre os discípulos, dizendo: “Isto é o meu corpo, que por vós é dado; fazei isso em memória de mim” Lucas 22:19.  

O asmo, por ser sem fermento, aponta para uma vida sem pecado, pois assim como o fermento infla a massa, o fermento da vaidade e do orgulho infla o ego, levando a pessoa a pecar. O asmo também é conhecido como o pão de aflição, pois foi feito às pressas para que o povo tivesse algo que comer quando partiu rumo ao deserto do Sinai. Esses dois aspectos apontam para Yeshua, aquele que foi perfeito, “o qual não cometeu pecado, nem na sua boca se achou engano” 1 Pedro 2:22; e aquele que sofreu sobre si nossas aflições: “Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido” Isaías 53:4. Yeshua é o matzah do seder de Pesach: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo” João 6:51.

Antes de comer o matzah, ao dizer “fazei isso em memória de mim”, Yeshua instituiu a ceia do Senhor que seria celebrada pelos cristãos de todo o mundo pelos séculos e milênios até hoje. Após se comer o matzah, é chegado o momento do terceiro cálice. Este é o cálice da redenção ou da salvação e se refere à promessa: “e vos resgatarei com braço estendido e com grandes juízos”. Foi esse o cálice que Ele ergueu e recitou a bênção milenar do vinho que diz: “Bendito és tu, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que cria o fruto da videira”. Em seguida, ele afirma: “Este cálice é o Novo Testamento no meu sangue, que é derramado por vós” Lucas 22:20. Esse é o cálice mais especial para nós que cremos em Yeshua, pois está conectado diretamente com seu sangue derramado por nós, estabelecendo uma nova aliança (Brit Hadashah). A velha aliança abrangia apenas Israel; nesta, todos os que creem no seu nome são chamados à salvação, o que inclui todas as nações, povos, raças e línguas.

O próprio Yeshua declarou: “Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida” João 5:24. O verbo passar relembra o anjo da morte que, ao ver a marca do sangue do cordeiro pascoal nas casas dos israelitas, passava por cima das mesmas que não sofriam o juízo divino. A mesma ideia é transmitida aqui ao se “passar” da morte para a vida eterna (chaiei olamim), quando o sangue do Cordeiro de Deus nos livra de toda e qualquer condenação.

Durante o seder, vários salmos e cânticos são cantados como expressão de louvor a Deus. O hallel (louvor) equivale à sequência dos salmos 113 a 118, especificamente cantados nessa ocasião. Alguns desses salmos são messiânicos, ou seja, referem-se à vida e obra do Messias. O salmo 116 é um deles. O salmista pergunta: “Que darei eu ao Senhor por todos os benefícios que me tem feito?” (v.12). E a resposta vem em seguida: “Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor” (v.13). Essa é uma referência clara ao terceiro cálice do seder, ao qual Jesus equiparou ao seu sangue, instituindo a nova aliança. Essas palavras proféticas foram cantadas por Yeshua em sua última noite, juntamente com seus discípulos. Esse foi o mesmo cálice que Ele beberia horas depois ao sofrer sua Paixão, derramando lágrimas de dor e sangue para dar de graça a salvação a todo aquele que crê. Bendito seja seu nome!

Por fim, o quarto cálice é o do louvor e se refere à promessa que diz: “Eu vos tomarei por meu povo e serei vosso Deus”. Esse é bebido com muita alegria e com cânticos finais do hallel para celebrar o livramento e a salvação de Deus para com Israel. Como cristãos gentios, podemos e devemos celebrar essa ocasião e essa data tão relevante não somente para todo Israel, mas na vida e ministério de Yeshua, assim como na vida de cada um que foi alcançado por tão grande salvação. Yeshua, que nos deu o pão e o vinho do seder, seu corpo e seu sangue por redenção, é digno de todo louvor, honra e glória pelos séculos dos séculos!


[1] Talmude, Megillah 10b.

כוס ישועות אשא ובשם יהוה אקרא

(Cos yeshuot esah uv’shem Adonai ekra)

“Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor”(Salmo 116:13)


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Abaixo segue um vídeo da canção de parte do Salmo 116, salmo messiânico cantado no seder de Pesach, exatamente como consta das Escrituras originais em hebraico.

Entrevista ao Portal Guiame sobre a Páscoa em 14 de abril de 2022

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