As Setenta Semanas de Daniel

As Setenta Semanas de Daniel

27 de Março, 2022 4 Por Getúlio Cidade

Um dos assuntos mais discutidos entre teólogos, principalmente no ramo da escatologia, diz respeito à profecia de Daniel referente às setenta semanas. Independente das possíveis interpretações, é praticamente consenso que essas semanas tratam de anos, pois esse era um conceito comum no judaísmo antigo (Levítico 23:8). Vamos analisar o contexto histórico dessa profecia, bem como os cálculos que a respaldam para estarmos desvendando as setenta semanas de Daniel.

A profecia se encontra no final do capítulo 9 do livro de Daniel, quando ele recebe a visitação do anjo Gabriel que fora enviado para lhe fazer compreender o significado da profecia de Jeremias referente aos setenta anos do cativeiro de seu povo, a qual Daniel buscava compreender. Gabriel, então, traz uma revelação bem mais profunda que trata de setenta semanas de anos, algo bem além do que buscava Daniel, ligadas à manifestação do tão aguardado Messias de Israel. No artigo Shemitá – O Ano Sabático do Senhor, explicamos que essas setenta semanas são dez ciclos de shemitá, dos quais nove já se cumpriram, restando apenas um ciclo, ou um período de sete anos, para se cumprir a plenitude da profecia.

“Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo, e sobre a tua santa cidade, para cessar a transgressão, e para dar fim aos pecados, e para expiar a iniquidade, e trazer a justiça eterna, e selar a visão e a profecia, e para ungir o Santíssimo.
Sabe e entende: desde a saída da ordem para restaurar, e para edificar a Jerusalém, até ao Messias, o Príncipe, haverá sete semanas, e sessenta e duas semanas; as ruas e o muro se reedificarão, mas em tempos angustiosos.
E depois das sessenta e duas semanas será cortado o Messias, mas não para si mesmo; e o povo do príncipe, que há de vir, destruirá a cidade e o santuário, e o seu fim será como uma inundação; e até ao fim haverá guerra; estão determinadas as assolações.
E ele firmará aliança com muitos por uma semana; e na metade da semana fará cessar o sacrifício e a oblação; e sobre a asa das abominações virá o assolador, e isso até à consumação; e o que está determinado será derramado sobre o assolador.” Daniel 9:24-27

As setenta semanas de anos são divididas basicamente em dois períodos. O primeiro é de sete semanas mais 62 semanas, o que resulta em 69, no qual o Messias é manifesto e “cortado”. O segundo período é visto em vários comentários teológicos como sendo uma dupla profecia. Uma já foi cumprida na destruição de Jerusalém e do Templo, no século I, pelo “povo do príncipe que há de vir” na figura de Tito e pelas legiões de Roma. A outra está por se cumprir e trata da manifestação do anticristo que fará guerra contra Israel “até o fim”. Vários teólogos antigos também veem nesse príncipe a figura de Antíoco IV, um tipo de anticristo que profanou o Templo e fez guerra contra os judeus na história de Hanukkah, assim como a figura do próprio anticristo que há de vir no fim dos tempos.

UM INVESTIGADOR DAS SETENTA SEMANAS

As setenta semanas de Daniel sempre foram um tema de muita curiosidade e especulação ao longo dos séculos. No entanto, há um escritor do século XIX que conseguiu desvendar com precisão o mistério que envolve as 69 primeiras semanas. Refiro-me a Sir Robert Anderson, inspetor-chefe da Scotland Yard que dirigiu seu departamento de investigação criminal, tendo sido respeitado por suas habilidades investigativas. Quando não estava combatendo o crime em Londres, escrevia sobre doutrina bíblica, o que o tornou conhecido como o “teólogo do serviço secreto”. Relacionou-se de modo próximo com os maiores teólogos de seu tempo, tendo pregado junto com John Derby e recebido elogios de ninguém menos que C.H. Spurgeon. Entre os muitos livros que escreveu, como bom investigador que era, desvendou o mistério das setenta semanas de Daniel de modo espetacular em seu livro The Coming Prince (sem tradução para o português).

Para dar início a seu cálculo, Sir Anderson delimitou o período das 69 semanas iniciais. Assim, a “ordem para restaurar e edificar Jerusalém” ficou sendo o ponto de partida. Tal ordem veio quase cem anos depois dessa visão de Daniel e se deu por intermédio do edito de Artaxerxes, em 445 a.C, no mês de Nisan, conforme o livro de Neemias, capítulo 2. O término das 69 semanas foi considerado o único dia em que Jesus se manifestou publicamente a Israel como Messias, o Príncipe, e isso se deu exatamente em sua entrada triunfal em Jerusalém. Foi na semana da Páscoa, quatro dias antes de ser crucificado, no dia 10 de Nisan, de acordo com o evangelho de João. Portanto, o início e o término das 69 semanas se dão no mês de Nisan, mês em que é celebrada a Festa de Pesach (Páscoa). Anderson segue uma longa linha de raciocínio investigativa e lógica, envolvendo diversas variantes, e por isso, seria impossível demonstrar todos os cálculos nestas poucas linhas. Mas buscarei fazer um resumo do essencial.

Considerando as 69 semanas de anos, temos 69 vezes 7 que nos dá 483 anos bíblicos. E quantos dias há em um ano bíblico? A resposta está na própria Bíblia. Esse cálculo é interessante porque as referências de Apocalipse apontam exatamente para a segunda metade da última semana de Daniel (Dn. 7:27 e 12:7), ainda por vir (Ap.11:2-3; Ap. 12:6,14 e Ap.13:5). Verifica-se que 3,5 anos são iguais a 42 meses que são iguais a 1.260 dias. Isso nos leva a conclusão de que o mês bíblico é de 30 dias e o ano bíblico é de 360 dias.  

Assim, 483 anos bíblicos multiplicados por 360 equivalem a 173.880 dias. Porém, esse número precisa ser convertido em termos de anos solares para se chegar ao real número de anos de acordo com o calendário solar. A órbita da Terra em torno do sol leva 365,2422 dias. Dividindo-se 173.880 dias por esse período, tem-se que as 69 semanas são precisamente 476 anos solares e 24 dias. Portanto, esse é o tempo exato entre o edito para reedificar Jerusalém e a manifestação do Messias como Príncipe.

O evangelho de Lucas, capítulo 3, narra o batismo de Yeshua por João (Yochanan) e afirma que esse evento ocorreu no 15º ano do reinado de Tibério César. Há sólida evidência histórica de que esse 15º ano começou no dia 19 de agosto de 28 d.C. Então, Yeshua teria iniciado seu ministério terreno no outono desse ano e, após cerca de três anos e meio, foi crucificado, o que teria ocorrido na primavera de 32d.C., no exato dia 14 de Nisan, véspera de Pesach.[1]

Faltava, então, parear as datas de início e fim da contagem do calendário hebraico com a do calendário juliano que era usado pelo império romano no tempo de Jesus. Isso não era uma tarefa simples, uma vez que a determinação do primeiro dia do mês no calendário hebraico depende de se saber quando ocorre a lua nova astronômica, o que não é visível a olho nu. No entanto, Sir Anderson dedicou-se a isso com a diligência de investigador que lhe era peculiar. Conseguiu que os cálculos referentes às fases lunares fossem feitos pelo Observatório Real de Greenwich para chegar às datas. Era necessário encontrar uma janela temporal que acomodasse as duas luas novas de Nisan separadas entre si de 476 anos e 24 dias. Estes 24 dias a mais mostraram também que o ano 32 d.C no calendário hebraico era bissexto, pois continha um mês extra para Adar, antes de Nisan. Isso é feito periodicamente até hoje para garantir que a Páscoa ocorra após o equinócio da primavera, conforme designado pela Torá.   

Em seus cálculos, Anderson concluiu que 1 de Nisan de 32 d.C, que marcava a lua nova e referenciava todos os dias do mês, caiu em 31 de março. Então, o dia da entrada triunfal teria sido nove dias depois, em 9 de abril de 32d.C. Assim, fez o cálculo do total de dias das 69 semanas para trás, incluindo os dias de anos bissextos do calendário juliano, chegando à data de 14 de março de 445 a.C para 1 de Nisan. Com o auxílio do Astrônomo Real do Observatório de Greenwich, Anderson conseguiu localizar a lua nova que marcava o mês de Nisan do ano 445 a.C., vigésimo ano do reinado de Artaxerxes da Pérsia (Ne. 2:1). E a data era mesmo 14 de março daquele ano.

Esses cálculos hoje podem ser feitos com auxílio de tábuas das fases lunares em programas apropriados e disponíveis na internet como os da própria NASA. Comparando tais cálculos com os de Sir Anderson, chega-se a um refino com uma margem de erro de apenas dois dias em um espaço temporal de 476 anos ou 173.880 dias. E tal erro está basicamente atrelado à incerteza da definição da lua nova astronômica em tempos tão remotos e sem a tecnologia disponível dos dias atuais. Os cálculos de Anderson representam uma precisão de 99,999%! As 70 semanas de Daniel sempre foram um desafio para os estudiosos da Bíblia. No entanto, Sir Robert Anderson desvendou seu mistério na década de 1870. Seu trabalho estupendo foi publicado em fins do século XIX e ainda é uma referência para os estudiosos de hoje.

A ÚLTIMA SEMANA DE DANIEL

Por que o cálculo das primeiras 69 semanas de Daniel é tão importante? Para mostrar que ainda resta uma semana para se cumprir antes da volta do Messias para Jerusalém e para que a ela estejamos atentos. Este é o último ciclo de shemitá que encerrará as dez shemitás que correspondem a setenta semanas de anos. Após as 69 semanas ou 476 anos solares, temos a chegada do Príncipe a Jerusalém em sua única manifestação pública como Messias, ocasião em que foi “cortado”, retirado de Israel. A partir daí, há uma lacuna temporal de mais de dois mil anos. O Príncipe foi “cortado” e veio o endurecimento a Israel para que se abrisse a janela de oportunidade para salvação dos gentios, até que se cumpra sua plenitude (Rm. 11:25).

O que vemos em seguida é a dispersão de Israel como nação que durou quase dois mil anos até a formação do novo Estado, em 1948, e a disseminação da mensagem do evangelho por todas as nações, povos e línguas. Passados praticamente dois mil anos após o término da 69ª semana, temos visto a restauração de Israel como nação e a volta de seus filhos dos quatro cantos do mundo, conforme predito pelos profetas. Essa reunião do povo judeu na Terra Santa aumenta a cada ano e é necessário que se consolide antes da volta do Messias, o Príncipe.

Um dos problemas com o livro de Daniel é a sequência em que foram distribuídos os capítulos, fora da ordem cronológica. O início do capítulo 10, por exemplo, não segue a cronologia do 9. Este foi escrito no primeiro ano do rei Dario (Dn. 9:1). O capítulo 10 foi escrito no terceiro ano de seu reinado (Dn. 10:1). Logo, após o capítulo 9, a sequência correta seria o capítulo 11 ou 12 (escritos no primeiro ano de Dario), sendo o capítulo 12 o mais provável na sequência. Isso é importante porque se tem uma continuidade da mensagem de Gabriel sobre a última semana. A expressão “tempo do fim” aparece várias vezes no capítulo 12. Na escatologia judaica, esse termo está ligado ao tempo de tribulação e angústia a ser enfrentado por Israel antes da vinda do Messias. A contagem das setenta semanas está prestes a ser retomada, a partir da falsa aliança de paz com Israel pelo anticristo, e se dará quando os juízos de Deus forem cada vez mais intensos sobre a Terra, de acordo com Apocalipse.

Em Daniel 12:1, ele é avisado de que haverá um tempo de angústia como nunca houve para seu povo. Isso ocorrerá no tempo do fim, durante a segunda metade da última semana (Dn. 12:6-7). Esse tempo de angústia foi profetizado por Yeshua em Mateus 24:21, é conhecido pelos cristãos como a Grande Tribulação e é necessário que ocorra antes de sua volta para o mesmo lugar de onde foi “cortado”, e de onde nunca mais foi visto, mas para onde voltará um dia para reinar. Ali em Jerusalém, o Messias, o Príncipe, será saudado do mesmo modo que foi recebido da primeira vez. “Porque eu vos digo que desde agora não me vereis mais, até que digais: Bendito o que vem em nome do Senhor.” Mateus 23:39   


[1] No capítulo 5 do volume 1 de A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo, há uma explicação detalhada da relação do cordeiro pascal com o Messias, incluindo a correlação das datas de sua entrada triunfal em Jerusalém e da crucificação com as datas preconizadas para o cordeiro pascal na Torá.

Referências

1- Robert Anderson, The Coming Prince, Grand Rapids, MI: Ed. Kregel, 1972.

2- Sir Robert Anderson | Plymouth Brethren Archive

3- Sir Robert Anderson – Biography and available works – SwordSearcher Bible Software


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